Por Flora Dutra – jornalista, antropóloga e fundadora do The Showdown – The Global Poker Culture
Recentemente, fui surpreendida — como jogadora e jornalista — por uma matéria publicada no Estadão que associava diretamente o poker a jogos de azar, sem o menor cuidado técnico ou responsabilidade editorial. O texto, assinado por Alice Ferraz, diz que o poker é como as bets e que gera dependência da mesma forma. Para isso, baseia-se em uma única fonte médica, sem contraponto, sem escuta à comunidade, sem dados científicos.
Aquilo me doeu. Me doeu como profissional, como jogadora e como comunicadora comprometida com a verdade. Doeu também em todos os atletas mentais que conheci durante minha atuação na comunicação do maior time de poker do Brasil: o Samba Poker Team. Ali, vi de perto rotinas espartanas, com acompanhamento psicológico, físico, nutricional, tudo com o rigor de qualquer esporte de alta performance.
O que está sendo feito no Brasil e no mundo do poker não é brincadeira. É ciência. É estatística. É autocontrole emocional. É leitura comportamental. É estratégia. Reduzir isso a “jogo de azar” é, no mínimo, ignorância técnica travestida de opinião.
A comunidade respondeu — e respondeu à altura
A indignação foi geral. Jogadores e entidades se manifestaram com firmeza e lucidez:
“Vocês deveriam se retratar. Existe uma responsabilidade a ser arcada com esse tipo de notícia (mentira) propagada aqui.”
— Kelvin Kerber, Samba Poker Team
“A Federação Mundial de Poker está à disposição para dialogar e esclarecer, com base em dados e estudos internacionais, por que o poker NÃO É UM JOGO DE AZAR. Seguimos trabalhando com responsabilidade para proteger o poker, os jogadores e o público em geral.”
— World Poker Federation

“Matéria preconceituosa, um desserviço imenso. Compulsão existe, inclusive por hábitos cotidianos como comer. Poker não é jogo de azar… azar tem quem lê algo tão desnecessário quanto essa matéria.”
— Roberta Cantelli
“Essa é uma das maiores atrocidades que já li sobre minha profissão. Fazer esse tipo de postagem sem averiguar a veracidade do que se fala deveria ser crime! Inafiançável!”
— Bruno Foster, jogador profissional há 22 anos
“Enquanto o Brasil não tiver educação estaremos fadados ao fracasso. Nem sequer o uso do ChatGPT a Alice Ferraz se permite. É o reflexo de uma sociedade onde o preconceito reina.”
— André Akkari
E tantos outros.
Poker é esporte da mente — e está na lei
No Brasil, o poker foi reconhecido como esporte da mente pela Portaria nº 13/2010 do Ministério do Esporte, seguindo diretrizes da IMSA – International Mind Sports Association, que também reconhece xadrez, go e bridge. A ciência por trás do poker é respaldada por nomes como Jesper Juul, Ian Bogost e Jane McGonigal, que estudam o papel dos jogos no desenvolvimento cognitivo e social do ser humano.

A distinção entre jogos de azar e jogos de habilidade é clara no campo jurídico e acadêmico. Inclusive, estudos na área de saúde mental mostram que a compulsão não se define pelo tipo de jogo, mas sim pela relação patológica da pessoa com determinada atividade — o que pode incluir comida, compras, celular, e sim, até trabalho e academia.
O exemplo do Japão: poker desde a infância, com ética e estrutura
Enquanto no Brasil ainda enfrentamos resistência baseada em desinformação, o Japão deu um passo ousado e educativo: realizou um torneio de poker exclusivo para crianças e adolescentes de 6 a 15 anos, durante a etapa final do Japan Open Poker Tour (JOPT).
Longe do estigma de “jogo de azar”, o evento japonês foi construído com base em valores pedagógicos e habilidades cognitivas. A estrutura foi impecável: troféus no lugar de prêmios em dinheiro, acompanhamento de responsáveis, formato de aprendizado colaborativo e apoio psicológico. As crianças puderam jogar individualmente ou em duplas com um adulto — mas todas as decisões estratégicas partiram dos próprios participantes.
Cada jogador teve até cinco oportunidades para pedir orientação. A ênfase era no diálogo, não na direção. O ambiente era calmo, seguro e propício à concentração. As recompensas? iPads, videogames e passes para a Disney — reforçando que o esforço era o valor celebrado, não o lucro.
O foco era claro: desenvolver raciocínio lógico, controle emocional, autoconfiança, comunicação e tomada de decisão. Mais do que um torneio, foi uma aula viva de como o poker pode ser uma ferramenta formativa, segura e transformadora.
Este é o tipo de abordagem que gostaríamos de ver mais no mundo — inclusive no Brasil. E é também por isso que o The Showdown existe: para inspirar, conectar e mostrar que o poker pode ser um agente de educação, inclusão e transformação desde a infância.
The Showdown: um projeto para virar o jogo
Por isso estou aqui. Por isso nasceu o The Showdown – The Global Poker Culture. Para mostrar, documentar, valorizar e defender esse universo extraordinário. Para contar as histórias invisíveis dos jogadores que transformaram o poker em ciência, esporte e arte. Para proteger a memória e o presente de um dos maiores fenômenos culturais do século XXI.
E também para desmascarar o preconceito, a ignorância e a superficialidade.
Porque não é só por mim. É por uma comunidade inteira.
Seguimos na luta.
Flora Dutra
Jornalista, antropóloga, pesquisadora em games & cultura
Fundadora do The Showdown – The Global Poker Culture
@theshowdownpoker
Referências
- Portaria nº 13/2010 – Ministério do Esporte (Brasil)
- International Mind Sports Association (IMSA) – www.imsaworld.org
- Juul, Jesper. The Game, the Player, the World (2003)
- Bogost, Ian. Persuasive Games (2007)
- McGonigal, Jane. Reality is Broken (2011)
- DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
- CID-11 – Organização Mundial da Saúde: Transtornos do Comportamento e Vício